sábado, 4 de agosto de 2012

A força.

Quando dei por mim, era eu ali... nas palavras dela... descrita...
Era eu ali, Pipa.
Miséria anônima, tinha  nome e endereço.






" De humana, restara-lhe apenas a sombra — pensou ela enquanto afugentava com um ramo de Lavandas, as traças impossíveis que nasciam do ventre de uma velha poltrona.
Passava horas contemplando as infinitas tonalidades de gris que se estendiam atrás das cortinas.
No torpor dos dias, via a brasa de seu olhar se apagar em vida, sentindo que por trás daquelas paredes o mundo e tudo que nele existia começava a se transformar em um amontoado de cinzas.
Nas altas horas, se revirava entre os lençóis da cama em companhia de lembranças que lhe faziam talhes enormes na madeira cinzelada da memória.
Chegou ao absurdo de pensar que sua alma estivesse presa em outros mundos, surpreendendo-se, não raras vezes, correndo atrás de quimeras de aparência dantesca, figuras com corpo humano e duas cabeças anexas, sendo uma de homem e outra de Leão.
 Rogava à Deus, que viesse em seu auxílio.


Uma noite, recuperou-se do transe. Desatou as correntes que lhe aprisionavam no sótão da mente, deixou aquele quarto sorumbático e saiu às ruas, quase que em um estado iluminado.


 Decidiu que devia entender-se pessoalmente com Deus, pois, com o Diabo já havia colocado suas pretensões em pratos rasos, de modo que ele foi obediente e se manteve afastado.


Levantou suavemente a cabeça, deixando-se banhar pelos raios daquele sol invernal que filtravam dos vitrais do templo.
Não pensou no passado.
Todas as paredes sacras abriram os olhos de pedra para vê-la, mas ela não pareceu incomodar-se, já que os seus pés estavam assentes na terra.


 Duelos de silêncios são sangrentos — murmurou ela sem qualquer agitação nos nervos.


Uma eternidade mais tarde, vendo que Deus não respondia aos seus lamentos, compreendeu que devia deixar aquele local, antes que a falange do Divino Espírito Santo se arrependesse de ter lhe concedido o direito de escutar suas orações e a única frase que conseguiu trespassar de seus lábios desencadeasse uma hecatombe celestial.


A mulher repousou as mãos no peito e deixou o altar antes mesmo que o alguém chegasse.
Entendeu que Deus não poderia estar em um lugar onde os arcanjos se ofendiam ao menor suplício, cochichando entre eles, mormente em idiomas estrangeiros que passavam largo de serem compreendidos.


Voltou para casa derrotada, deslizou sigilosamente até a porta e antes que girasse a fechadura sentiu que uma vaporosa mão de luz pousava em suas costas.
Virou-se em câmara lenta e topou com um olhar sereno, de abandono.
Os olhos de Deus — reconheceu.


Deus levou uma das mãos ao seu coração e desejou fortemente:
— "Permita que eu entre..."
— Com uma condição — exigiu dele. A de que fique para sempre.


Ela não se deu por achada até que Deus começou a chamá-la pelo seu nome no alpendre de casa.


Foi com o folguedo de uma explosão que a bala da fé se alojou em seu coração.


Sentiu que suas pernas e braços recobravam o ânimo perdido e que a miséria anônima que lhe relegou à uma existência fantasmagórica, desaparecera como um truque de mágica que se tira da cartola da memória.


Esta manhã tornei a vê-lo. Em sonhos. Tão menino. Corria de um lado para o outro com um sorriso incansável no rosto. Rabisquei seus traços em meu caderno de anotar destinos. Era eu ali no canto. Tentando recordar os estranhos que sempre fomos.


Há algumas décadas atrás, fiz um rosário para colocar sobre o túmulo da inocência. Usei flores de alfazema. As rosas eram inacreditavelmente rubras.
Deus veio em minha direção segurando um lírio branco nas mãos, mas não soube me dizer onde ela estava enterrada.


Reinventa-nos oh Deus , Rocha mais Alta que eu, a perdida força."





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