sexta-feira, 5 de novembro de 2010

FolHas de aLmA

Horrível, pensava, adivinhar mover-se nela aquele monstro brutal! 
Ouvir ramos estrelejando e sentir aqueles cascos nas profundezas dessa floresta cheia de folhas, a alma; nunca estar inteiramente alegre, nem inteiramente segura, pois a qualquer momento o animal podia estar movendo-se; 


Ódio que, especialmente depois da sua doença, fazia-lhe sentir um doloroso arrepio na espinha; 
Causava-lhe uma dor física, todo o prazer da beleza, da amaizade, do bem-estar, 


De sentir-se amada, de tornar a casa deliciosamente acolhedora, tudo vacilava e pendia, como se na verdade houvesse um monstro a roer as raízes, como se toda a panóplia do contentamento não fosse mais que amor-próprio!


E a sala tinha suas paixões e invejas e raivas e mágoas
a sobrepujá-la e encobri-la, como um ser humano [...]
TRavava a boca o silêncio de segredos insondáveis... e aqueles mistérios insolúveis que preenchiam seu estomâgo.....



Seu modo mais profundo de ser é que se queria captar
e converter em palavras, o modo que para o espírito
é o que é a respiração para o corpo, o que se chama
de felicidade ou infelicidade.



Mas ficava ali parada.... olhando o caderno farto de folhas... olhando o caminho diante dela : Aberto... 


Abriu o livro sobre o criado-mudo  e leu:




" Querido,

Tenho certeza de que estou enlouquecendo de novo.
      Sinto que não podemos passar por outra daquelas
terríveis fases. E desta vez não ficarei curada.
            Começo a ouvir vozes, e não posso me concentrar.
Assim, estou fazendo o que me parece melhor.


Você me deu a maior felicidade possível. Não creio
que duas pessoas pudessem ser mais felizes até
chegar esta doença terrível. 



Não consigo mais lutar.
Sei que estou estragando a sua vida e que sem
mim você poderá trabalhar. 

E você vai, eu sei. Está
vendo, nem consigo mais escrever adequadamente.
Não consigo ler. O que quero dizer é que devo a você
toda a felicidade da minha vida. Você foi absolutamente
paciente comigo e incrivelmente bom. 

Quero dizer isso —
e todo mundo sabe. Se alguém pudesse me salvar, teria
sido você. 

Perdi tudo, menos a certeza da sua bondade.
Não posso mais continuar estragando sua vida. 



Não creio
que duas pessoas tenham sido mais felizes do que nós fomos.

Virginia"



Não conseguia parar de repetir aquela última frase.... era perfeita... linda... 
toda a carta era linda... mas aquela frase tinha algo que desatava nela algum nó.


Tinha de ir andando, disse ela, erguendo-se.
Mas parou, como se fosse dizer alguma coisa; e ela indagava consigo qual a causa.Pois não estavam ali as rosas?(...)

Há uma dignidade nas pessoas; uma solidão; até entre marido e mulher, um abismo; mas que se devia respeitar, pensou ela,  vendo-o abrir  a porta; pois não se podia renunciar a isto, ou denegá-lo a um marido, contra a vontade deste, sem perder a própria independência, o respeito próprio; algo que não tem preço, em suma.(...)

Mas...mas por que se sentia de súbito, por alguma coisa que não podia tinar, desesperadamente infeliz? 



Como alguém que houvesse perdido uma pérola ou um diamante na relva e separa cuidadosamente as hastes, aqui, acolá, e busca em vão cavando afinal até as raizes, assim examinou uma coisa e outra; não, 
 ..... não, isso não lhe importava; 


 O que havia era um sentimento, algum desagradável sentimento, experimentado talvez pela manhã; alguma coisa que alguém lhe dissera, de mistura com certa predisposição sua, no quarto, ao tirar o sapato; 


 Trouxera as rosas. As suas flores! Era aquilo! 
Ambos a tinham criticado, tinham zombado injustamente dela, por causa das suas recepções, suas manias de dona de casa,


 Era aquilo! Era aquilo!
Bem, como iria ela defender-se? 

Agora que sabia do que se tratava, sentia-se perfeitamente feliz.
Era só silêncio fora dela.

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